Com uma fotografia de cair o queixo e cenas de ação inesquecíveis, O Regresso ainda é uma contundente crítica ao racismo na América

Texto: Eduardo Torelli

Fotos: Divulgação

O público de cinema pode até se dividir entre os que preferem Marvel ou D.C., ou entre fãs de comédias, dramas ou filmes de ação. Em uma coisa, porém, a esmagadora maioria dos cinéfilos concorda: Leonardo DiCaprio deveria ter ganho um Oscar há muito tempo. A tão esperada premiação do ator em 2016, portanto, foi comemorada ao melhor estilo “Copa do Mundo” – e o diretor Alejandro González Iñárritu leva parte dos louros por tê-lo escalado como o protagonista do excelente drama O Regresso, que saiu em Blu-ray e DVD pelo selo Fox. A obra ainda faturou os Oscar de Melhor Diretor, Melhor Filme Dramático e Melhor Fotografia e três Globos de Ouro (Filme Dramático, Ator e Diretor).

Ambientado em 1823, o filme é um tipo de Western, só que deslocado para as paisagens ainda inexploradas dos EUA, onde caçadores de peles frequentemente combatem tribos indígenas que reagem à sanha predatória do homem branco. Leonardo DiCaprio é Hugh Glass, um tipo taciturno e corajoso que serve de guia para caçadores que se aventuram na floresta. Ele é visto com cautela pelos demais brancos, já que tem um filho mestiço e vive no limiar de dois mundos antagônicos. Glass é atacado por um urso (uma cena brutal e magistralmente realizada), fica mortalmente ferido e o comando da expedição destaca um dos caçadores, John Fitzgerald (Tom Hardy), para fazer companhia ao moribundo até que ele se recupere.

Porém, temendo a chegada iminente de guerreiros indígenas ao acampamento, Fitzgerald decide agir ao seu modo: ele mata o filho de Glass e abandona o ferido à própria sorte. Quando finalmente se vê em condições de andar e de se defender, o herói sai em perseguição do inimigo, determinado a vingar a morte do filho a qualquer custo. Segue-se uma sucessão de cenas recheadas de adrenalina, nas quais Glass enfrenta as armadilhas da natureza e inimigos brancos e indígenas, sem desistir de seu objetivo.

FOTOGRAFIA MEMORÁVEL

Além da ação bem-construída e do elenco excelente, O Regresso se destaca por sua cinematografia de cair o queixo (creditada a Emmanuel Lubeski, laureado com um Oscar por seu trabalho). As locações são incríveis (inserem o espectador em uma atmosfera bucólica e selvagem) e a linguagem narrativa é de uma criatividade ímpar. Longos e elaborados planos-sequências nos colocam no meio de batalhas sangrentas e nos conduzem por rios revoltos e matas fechadas. Mas, o que é ainda mais relevante: apesar de toda essa pirotecnia visual, o diretor Iñárritu jamais perde o foco do personagem central, assegurando-se de que o filme não abdique de seu conteúdo em favor de uma plástica arrebatadora.

Baseado em fatos (realmente existiu um Hugh Glass, embora a base para o roteiro tenha sido um romance de Michael Punke), O Regresso teve uma produção complicada. Para se ter uma ideia, a primeira vez em que se cogitou fazer um filme a partir dessa história foi em 2001, quando Akiva Goldsman comprou os direitos sobre o livro com o propósito de realizar uma adaptação dirigida por Park Chan-wook. Antes de DiCaprio assinar o contrato, atores como Samuel L. Jackson e Christian Bale também foram cogitados para o papel de Glass. Iñárritu só foi confirmado como diretor em 2011, ou seja: três anos antes das filmagens realmente começarem (o atraso na produção se deveu a conflitos de agendas).

As filmagens propriamente ditas foram um “drama” à parte, não tanto pela densidade do argumento, mas pelas condições extremas que elenco e equipe tiveram que enfrentar para rodar as cenas. Como sempre ocorre em filmes captados em locação, foi preciso conciliar as demandas técnicas com as adversidades do terreno – ao invés das confortáveis instalações de um estúdio, as sequências tinham, por palco, florestas, corredeiras de rios e paisagens inóspitas e geladas. Azar do elenco, que, literalmente, teve que “vestir as camisas” de seus personagens para que as cenas fossem realizadas.

ÁGUAS GELADAS

Leonardo DiCaprio afirmou que O Regresso lhe impôs algumas das sequências mais difíceis da carreira. Afinal, para encarnar o obstinado Hugh Glass, o ator precisou mergulhar em águas geladas, se arrastar no chão de florestas e lutar na neve. Seus companheiros de cena fizeram sacrifícios semelhantes para que o filme tivesse o realismo tão almejado por Iñárritu (um deles teria sido arrastado nu, na neve, durante a filmagem de uma batalha). As locações escolhidas incluíram regiões como as montanhas nevadas de Calgary (Canadá) – e a opção do cineasta e do diretor de fotografia foi a de usar o máximo possível de luz natural, o que costuma ter um resultado e tanto na tela, mas que demanda muito trabalho e escolhas bastante precisas em termos de lentes, câmeras e outros equipamentos do gênero.

Outro problema inerente à realização de O Regresso era a busca constante pelo melhor aproveitamento do tempo durante a produção, já que a decisão de priorizar a luz natural colocava a equipe à mercê do relógio e dos elementos. Durante as filmagens no Canadá, por exemplo, uma brusca mudança climática obrigou Iñárritu e sua trupe a irem buscar outras paisagens geladas na Argentina, onde algumas sequências foram captadas. Todo esse comprometimento com o realismo fez até com que Leonardo DiCaprio (um vegetariano convicto) voltasse temporariamente a comer carne: o ator realmente mastigou um naco de bisão cru em uma cena do filme, já que uma primeira tentativa de simular este indigesto “banquete” com um pedaço de gelatina mostrou-se inconvincente quando colocada em prática.

 

URSO DIGITAL

Sem esquecer – é claro! – a famosa cena que mostra o ataque do urso. Na tela, a sequência parece tão autêntica que muita gente cogitou a hipótese da fera ser real, e não algum truque elaborado por um técnico em efeitos especiais. O realismo, na verdade, se deve à criteriosa pesquisa que o diretor fez sobre o tema, assistindo a vídeos que documentavam os ataques dessas criaturas e conversando com pessoas que sobreviveram a esse pesadelo. O urso propriamente dito era, sim, um truque de pós-produção: seus movimentos foram feitos por um dublê e, posteriormente, “transportados” para uma figura 3D concebida e animada pela Industrial Light and Magic (o processo é parecido com aquele utilizado na concepção do “Gollum”, de O Senhor dos Anéis, e dos chimpanzés inteligentes de Planeta dos Macacos – A Origem).

Se você não assistiu a esse épico no cinema, a dica é fazê-lo agora, no conforto do lar. Além de ser uma boa aventura – do tipo que tem muito mais densidade que os triviais filmes de super-heróis –, O Regresso faz uma contundente crítica ao racismo, que está entranhado na cultura e na história norte-americana. Rejeitado por duas culturas (a do homem branco e a dos indígenas), o herói do filme acaba conhecendo o lado menos virtuoso de cada uma delas. Não deixe de ver!